Quando acordei, o céu representava minha própria imagem e semelhança do dia anterior. Estava fresco e um cinza-nublado cobria tudo. Meus olhos doeram ao me enxergar e quis voltar desesperadamente a adormecer. Tinha tido um sonho bom.
Quando entrei no ônibus, no céu representava tudo aquilo que, definitivamente, eu não estava sendo: figurava imponente lá em cima, o sol, todo cheio de si. Não sendo egoísta, lançava raios sob nossas cabeças ― em uma atitude agressiva ao meu ver parcialmente tampado pela minha mão.
Não havia trânsito, tudo permanecia parado, carro depois de carro. Os veículos de maior porte fechavam cruzamentos e os menores estavam tão juntos que bastava um espirro para uma colisão. Claro que não podiam deixar isso de lado, as pessoas gritavam entre si e pouco faltava para um estapear o outro. Nem eram oito da manhã.
Nisso uma velhinha pediu para se sentar ao meu lado ― a essa altura já tinha feito do banco vazio a minha escrivaninha. Puxei tudo para meu colo e lhe dei espaço. Começamos um papo que certamente valeu bem mais que o dia inteiro que tive na faculdade, quiçá outros dias.
Crianças e velhos possuem em si características semelhantes mesmo com o longo período que os separam. As crianças são sapientes dentro de sua simplicidade e sinceridade ao ver o mundo e as pessoas, não estão presas a pré-conceitos, receios ou qualquer coisa que os prenda a uma conclusão medíocre. Já os velhos, esses já viram muito, passaram por mudanças extraordinárias, o tédio estava presente em romances de biblioteca apenas. O rosto enrugado e os olhos brilhantes, quase sempre com aquele aspecto úmido, marcam território no campo da experiência e sabedoria.
Ao indagarmos sobre o trânsito, ela me disse que aquilo ''não é progresso, minha filha, é atraso''. Chamou minha atenção quanto a construção de novos prédios e suas características. Falamos sobre o excesso de carros nas ruas e concordamos quanto às facilidades de crédito. Sobre isso filosofou que "quem gasta mais do que ganha, é ladrão de si mesmo". Pura verdade. E completou: "Eu, eu vivo como posso".
Ela estava voltando para perto de onde eu estava indo. Então, veja bem, eu, que não queria enxergar o cinza e evitava o brilho do sol a qualquer custo, me senti incrivelmente patética e pecadora diante dela ― que não se importou com cinzas ou brilhos, se arrumou no seu vestido branco com flores rosas e seguiu a própria vida por si.
5.4.11
20.
25.3.11
19.
Clara me olhava tímida. Clarinha nunca foi do tipo que ouvia um A sobre minhas noites em claro sem ficar horrorizada ou dizer uns 'Ai, meu Deus' ao longo das narrativas. Coitada da Clara. Estava dizendo a ela que hoje fui ao cinema. Éramos apenas dois: eu e um cara lá ao fundo. Coisas de hora de almoço.
Contei a ela que nunca me sentira tão tentada a sentar ao lado de alguém. E aí, quando ela me respondeu com aquele "Para...?", me perguntei o que diabos fazia andando com aquela garota.
Meu Deus, Clara, se há um lugar cheio de cadeiras vagas e vem alguém querendo sentar logo ao SEU lado, o que você pensa?
Ela até fez menção de abrir a boca depois de um tempo, mas não a deixei falar qualquer coisa. Tinha receio de sair barbaridades dali, perder a paciência e nunca mais a olhar outra vez. Então completei com o seguinte: pode ter certeza: ou é assalto ou ele vai chegar em você!
Clarinha fez cara de surpresa, como quem diz "oh-agora-tudo-faz-sentido" e me mandou prosseguir, mas eu disse que era aquilo. E ela me olhou perplexa, indagou como tive coragem de deixar a coisa por aquilo mesmo. Ué, deixei e pronto -- respondi com simplicidade.
Ela soltou a respiração de forma audível; intorelante, diria. Formou uma concha com as mãos e começou: lembrou-me que aquilo foi o cúmulo do descaso, que'u virara as costas para o próprio destino. Filosofou que negar-se a viver era o mesmo que não querer viver e que era pecado negar a vida; mas, acima de tudo, uma coisa era evitar aproximações com quem passa ao seu lado, por alguns segundos, outra era evitar por cada segundo das duas horas de filme. Olhou-me seriamente, exclamou um "Francamente!", levantou-se sem que eu pudesse falar qualquer coisa.
É, às vezes até as Clarinhas surpreendem.
27.2.11
18.
26.2.11
17.
entre esquina e outra
as quadras avanço
de lugar vagamente conhecido
um mapa desenho
a lua, lá em cima, é meu norte
ora aprendo a caminhar
ora aprendo é a me esquivar
os costumes não são os mesmos
as pessoas, tampouco
ainda que haja algo de comum naquilo que me atrai
sem casa, sem rumo
sem porquês,
aprendo para onde chegar
aonde pisar
até que o caminho de volta
eu possa encontrar.
1.2.11
16.
se tenho pena de alguém, é do amante
que de todos, me parece o mais distante
se de forma boa, não sei
há o bom do antes, do agora e durante
se tem o amante um único temor
diria sem dúvida,
na segurança de quem observa,
que sentir falta é seu horror.
se antes a vida romântica
lhe servia de gasolina para o sarcasmo
surpreendeu-se a rolar de canto a canto
entre o tormento de uma dúvida
e no delirar de uma fantasia
se há tortura
é pensar nos breves encontros, às escondidas
que terminam assim, de repente
sem a chance de uma despedida.
se há raiva, se há silêncio
o amante aguarda
os próprios cabelos, acaricia
e imagina
que digas te amo no fim do dia.