28.9.11

26.

Lúcia mal pôde acreditar nas horas que os ponteiros apontavam. Revisou em sua mente e não conseguiu se lembrar quando havia ido se deitar tão cedo na última década. Permaneceu ali, de lado, os olhos piscando energeticamente, como em pose de desafio. Escutou quando a água encontrou o chão de repente, mas não tirou a cabeça do travesseiro. Era mesmo quase hora daquilo acontecer. Maldita caixa d'água. Maldito subúrbio. Malditos sejam os acomodados que não fazem nada, absolutamente nada contra aquilo. Um cão ladrava em algum lugar distante, compondo a trilha que se estenderia pela noite até que os sons do dia transformassem água e cão em bobagem. Rolou na cama de um lado para o outro, uma, duas, três vezes até encontrar o lugar perfeito. Colchão magro, desconfortável. Apertou o travesseiro sobressalente contra o peito e afundou o nariz nele, tentando encontrar algum resquício de seu cheiro. Mas nada. Nem sempre as coisas foram assim para Lúcia. Houve época em que sua janela mostrava paisagem diferente, talvez não digna de panfletos de turismo, mas bonita o suficiente para se alegrar, para chorar, para se sentir bem, para compartilhar. Houve época que o telefone tocava constantemente e a caixa do correio borbulhava de revistas, encomendas, cartões postais. Essas duas últimas coisas ainda ocorrem, mas apenas para cobranças e propagandas baratas. Algo apertou dentro de si, espremeu os olhos e, para sua surpresa, sentiu uma gota passeando pela ponte do seu nariz. Muito tempo que uma água não passava por ali. E motivos, devo lhe dizer, ela tinha de sobra. Barulho fora de casa, barulho dentro de casa, barulho dentro de seu quarto, dentro de sua cabeça, então, nem se fala. Na maior parte do tempo aquilo lhe passava desapercebido, mas ultimamente tem sido motivo para loucura. Nem sempre foi assim. Lúcia abriu mão de muito e frequentemente se vê pensando no passado, querendo desesperadamente vivê-lo outra vez. As coisas mudaram, não comia mais em lugares badalados, divide um quarto com a irmã mais velha, mãe de dois de seus sobrinhos, gorda e divorciada duas vezes, mas ainda se dá ao luxo de manter sua marca de cigarros preferida - ah! e evita usar a expressão 'se dar ao luxo', pois, para ela, denota a pobreza em toda sua existência. Também não corre atrás de ônibus, embora apresse o passo vez ou outra em cima dos saltos desbotados e das ruas desreguladas do centro da cidade. Lúcia vacilou enquanto mais lágrimas se soltavam. As risadas de uma época distante, mesmo que pareça tanto com o dia anterior, ecoavam, os tapinhas cúmplices pareciam fazer pressão sob suas costas. Sabia que aquilo era puramente reação do seu psicológico. Maldito psicológico. Lembrou-se do dia que quis escrever algo amável em virtude do Dia do Amigo, mas que acabou não escrevendo por falta de tempo e excesso de álcool. Ainda bem que não o fez, estaria chorando bem mais agora. Lúcia se recompôs com a ajuda dos lençóis. Respirou fundo, fechou os olhos e ficou sonhando com o dia em que tudo mudaria de novo, o que faria, o que não faria e essas coisas assim. Fantasiou tanto que logo a história se fundiu nos sonhos de seu sono. 

9.9.11

24.

No táxi que me trouxe até aqui, Fionna Apple me dava razão...

Uma vez vieram reclamar comigo sobre a condição de ser humano. Não sobre as diferenças, a pobreza, o preconceito; mas sobre o simples fato de ter que viver, ter que comer e beber para sobreviver e a escravidão em torno de algo que nem é desejado. À época pensei que fosse loucura, ainda mais vindo de quem vinha, mas à época eu era diferente. Via a vida de modo diferente e até a vivia de forma diferente. Todos éramos diferentes, com uma ou outra exceção onde não percebi mudança.

Hoje percebo o que quis dizer. A condição de vida é algo tão escravista que chega a dar pena. Às vezes olho ao meu redor e tenho até vontade de saber de uma ou outra história de alguém que está sentado ao longe conversando com um grupo de amigos. Juro que tenho, tenho esse perchant por histórias. Ao mesmo tempo que me cansa o fato, não físico, de ter que sair de onde estou e ir lá. Temo que será a mesma coisa e a mesma coisa termina na mesma escravidão. Somos escravos de sentimentos, de comida, de bebida, somos escravos do dinheiro e do trabalho, somos escravos daquilo que os outros querem que sejamos, somos escravos até de nós mesmos - talvez, principalmente, de nós mesmos.

Não culpo o bêbado por sua condição.

20.5.11

22.

os menores dizem que sentem dor
os poetas falam em corações
- partidos, estraçalhados.
eu não cria que seria possível
mas dele, só tenho alguns pedaços,
cada qual firme em minha mão
enquanto algo em mim borbulha --
será crime? será tortura?
não, não, é uma certa angústia
daquela que não importou a luta,
pois sabe que irá perder.
fugir, calar-se, sumir
deixar a coisa passar, é melhor partir
planos válidos só para quem nunca sentiu a alegria
em um abraço.
e eu, que nunca acreditei no dito egoísmo bom,
digo: impossível agora não entendê-lo
aproveito e defendo: é desprezível desejar a outrem
uma vida sem lamentos?
se pondero, acabo por desistir.
que a vida tome seu próprio rumo
e faça dela o que bem quiser
enquanto eu daqui me sento em pleno breu
aguardo, talvez em vão, por quem lhe falo
e trato de remendar os pedaços
desse troço, desse troço chamado coração.

7.5.11

21.

who is this?
(who is this?)
that makes my heart
beat this heavily
and fast?
where's my breath
going to?
who is this?
(who is this?)
that doesn't give me
a clue about
what to think?
who is this?
(who is this?)
that carries
my sleep away,
that doesn't
allow me to dream
who is this?
(who is this?)
someone I'll never
touch or something
I'll never have
WHO
IS
THIS?
something so deep
so mine, so incisive
so intimately
distant
who is this?
(who is this?)
oh, this unnamed feeling of mine...
go on!
and say goodbye.

5.4.11

20.

Quando acordei, o céu representava minha própria imagem e semelhança do dia anterior. Estava fresco e um cinza-nublado cobria tudo. Meus olhos doeram ao me enxergar e quis voltar desesperadamente a adormecer. Tinha tido um sonho bom.

Quando entrei no ônibus, no céu representava tudo aquilo que, definitivamente, eu não estava sendo: figurava imponente lá em cima, o sol, todo cheio de si. Não sendo egoísta, lançava raios sob nossas cabeças ― em uma atitude agressiva ao meu ver parcialmente tampado pela minha mão.

Não havia trânsito, tudo permanecia parado, carro depois de carro. Os veículos de maior porte fechavam cruzamentos e os menores estavam tão juntos que bastava um espirro para uma colisão. Claro que não podiam deixar isso de lado, as pessoas gritavam entre si e pouco faltava para um estapear o outro. Nem eram oito da manhã.

Nisso uma velhinha pediu para se sentar ao meu lado ― a essa altura já tinha feito do banco vazio a minha escrivaninha. Puxei tudo para meu colo e lhe dei espaço. Começamos um papo que certamente valeu bem mais que o dia inteiro que tive na faculdade, quiçá outros dias.

Crianças e velhos possuem em si características semelhantes mesmo com o longo período que os separam. As crianças são sapientes dentro de sua simplicidade e sinceridade ao ver o mundo e as pessoas, não estão presas a pré-conceitos, receios ou qualquer coisa que os prenda a uma conclusão medíocre. Já os velhos, esses já viram muito, passaram por mudanças extraordinárias, o tédio estava presente em romances de biblioteca apenas. O rosto enrugado e os olhos brilhantes, quase sempre com aquele aspecto úmido, marcam território no campo da experiência e sabedoria.

Ao indagarmos sobre o trânsito, ela me disse que aquilo ''não é progresso, minha filha, é atraso''. Chamou minha atenção quanto a construção de novos prédios e suas características. Falamos sobre o excesso de carros nas ruas e concordamos quanto às facilidades de crédito. Sobre isso filosofou que "quem gasta mais do que ganha, é ladrão de si mesmo". Pura verdade. E completou: "Eu, eu vivo como posso".

Ela estava voltando para perto de onde eu estava indo. Então, veja bem, eu, que não queria enxergar o cinza e evitava o brilho do sol a qualquer custo, me senti incrivelmente patética e pecadora diante dela ― que não se importou com cinzas ou brilhos, se arrumou no seu vestido branco com flores rosas e seguiu a própria vida por si.

25.3.11

19.

Clara me olhava tímida. Clarinha nunca foi do tipo que ouvia um A sobre minhas noites em claro sem ficar horrorizada ou dizer uns 'Ai, meu Deus' ao longo das narrativas. Coitada da Clara. Estava dizendo a ela que hoje fui ao cinema. Éramos apenas dois: eu e um cara lá ao fundo. Coisas de hora de almoço.

Contei a ela que nunca me sentira tão tentada a sentar ao lado de alguém. E aí, quando ela me respondeu com aquele "Para...?", me perguntei o que diabos fazia andando com aquela garota.

Meu Deus, Clara, se há um lugar cheio de cadeiras vagas e vem alguém querendo sentar logo ao SEU lado, o que você pensa?

Ela até fez menção de abrir a boca depois de um tempo, mas não a deixei falar qualquer coisa. Tinha receio de sair barbaridades dali, perder a paciência e nunca mais a olhar outra vez. Então completei com o seguinte: pode ter certeza: ou é assalto ou ele vai chegar em você!

Clarinha fez cara de surpresa, como quem diz "oh-agora-tudo-faz-sentido" e me mandou prosseguir, mas eu disse que era aquilo. E ela me olhou perplexa, indagou como tive coragem de deixar a coisa por aquilo mesmo. Ué, deixei e pronto -- respondi com simplicidade.

Ela soltou a respiração de forma audível; intorelante, diria. Formou uma concha com as mãos e começou: lembrou-me que aquilo foi o cúmulo do descaso, que'u virara as costas para o próprio destino. Filosofou que negar-se a viver era o mesmo que não querer viver e que era pecado negar a vida; mas, acima de tudo, uma coisa era evitar aproximações com quem passa ao seu lado, por alguns segundos, outra era evitar por cada segundo das duas horas de filme. Olhou-me seriamente, exclamou um "Francamente!", levantou-se sem que eu pudesse falar qualquer coisa.

É, às vezes até as Clarinhas surpreendem.

27.2.11

18.

" O álcool fizera efeito e pouco estava me lixando se conseguiria desviar daqueles que vinham andando contra o fluxo. De qualquer forma, pouco me importava, sinceramente, todo mundo deveria estar tão ou mais do que eu. Passei meu braço em volta do pescoço de um desconhecido tão amigo, não conseguia lembrar o nome, mas sentia os elos se tornando cada vez mais fortes entre a gente. Sorriso de um lado, risada do outro. Só queria saber para onde iríamos depois.

Do nada um rosto de fato conhecido surgiu, me dando um puta susto, tão conhecido que me doeram as entranhas. Sabia quem era, porque estava ali, o que sentia. Deveria ser meu porto seguro, não? Mas queria aquilo longe de mim, não queria nada das coisas que me prendessem a terra por lá. Não sei o que falou, só sei que eu, usando uma certa inclinação de corpo difícil de detalhar, não parava de lhe perguntar E daí, qual o problema? E daí, qual o problema? E daí, qual o problema? Podre na alma, no corpo e no álcool, era tudo que era.

Puxei mais um pouco, até que o resquício de fogo finalmente me queimou ― dedos e lábios. Fiz careta mesmo sem sentir a dor, em uma falsa pretensão de transmitir pureza. Amassei o restante no cinzeiro. Você fuma demais. Tive que rir. A risada me pareceu tão longa que pensei estar rindo de uma lembrança muito distante quando parei. Sempre disse. Desavergonhados são os virginianos. Servi vinho para ambos.

E a reação depois da repetição da mesma pergunta, eu mal lembro. Só sei que depois de um tempo o porto seguro se foi. Soube que não foi tranqüilo como digo, seguiu-se um escândalo de proporções bem grandes, onde mal me continha em pé, choro de um lado e riso histérico do outro. Não preciso dizer a quem pertencia o quê, certo? Só não enxerga quem não quer, sempre fomos diferentes, até na bebedeira. Você está caindo por terra, não sei o que anda querendo provar, não que eu possa falar algo… O cigarro estava de bobeira na minha frente, pedia para ser acendido e não fiz questão de negar. De qualquer forma, você tem que dar um jeito nessa coisa de vocês, isso é incomum. Fiz que não entendi do que se tratava e talvez não entendesse mesmo. Comecei a levar fé em Faulkner depois que li a respeito daquele lance onde as palavras não serviam para nada, que elas não se adaptavam nem mesmo ao que elas queriam dizer. Algo assim. Quantas vezes disse apenas por dizer?

Em resposta, não quero provar nada a ninguém, exceto essa coisa, como você chama, essa coisa não vai muito longe. Nada disso vai muito longe, chegará uma hora, guarde o que te digo, chegará uma hora em que nossos caminhos estarão tão distantes um do outro, que não haverá grude que nos prenda. Eu terminarei por baixo, talvez por terra, como você diz, o que faz parecer um discurso perdedor, mas é a verdade. Aí tu me pergunta se lamento. Bebemos vinho, tragamos do cigarro, controlei a voz. Aponto, respiro e respondo. Lamento e já sofro, às vezes me deprimo, mas mantenho a compostura. Já disse em algum lugar que lutar contra o inevitável é bobagem. Sei lá, vai ver Coppola não dirige meu filme?

Rimos e rimos tanto e tão prolongadamente que no final nos olhamos, cúmplices, daquilo que agora me parecia memória distante, relato de sonho. "

26.2.11

17.

entre esquina e outra
as quadras avanço
de lugar vagamente conhecido
um mapa desenho
a lua, lá em cima, é meu norte
ora aprendo a caminhar
ora aprendo é a me esquivar
os costumes não são os mesmos
as pessoas, tampouco
ainda que haja algo de comum naquilo que me atrai
sem casa, sem rumo
sem porquês,
aprendo para onde chegar
aonde pisar
até que o caminho de volta
eu possa encontrar.

1.2.11

16.

se tenho pena de alguém, é do amante
que de todos, me parece o mais distante
se de forma boa, não sei
há o bom do antes, do agora e durante

se tem o amante um único temor
diria sem dúvida,
na segurança de quem observa,
que sentir falta é seu horror.

se antes a vida romântica
lhe servia de gasolina para o sarcasmo
surpreendeu-se a rolar de canto a canto
entre o tormento de uma dúvida
e no delirar de uma fantasia

se há tortura
é pensar nos breves encontros, às escondidas
que terminam assim, de repente
sem a chance de uma despedida.

se há raiva, se há silêncio
o amante aguarda
os próprios cabelos, acaricia
e imagina
que digas te amo no fim do dia.